terça-feira, abril 15

A Monster House voltou.

E essa camisa aí?!
Muito grande?
Não, é feia mesmo. – viu um buraco que não percebi – Inda tá rasgada: além de feia, não presta. – amigo é pra essas coisas.
E eu tinha ido na casa daquele filho da puta pra ver como ele tava. O pai dele tentou matá-lo. Em uma das brigas, empurrou-o para fora do carro em movimento. Mas antes, devo contextualizá-los:
Havia um lugar chamado Moster House. Casa que Ronaldo, o sacana que zoou minha camisa, recebeu por herança da mãe, que falecera quando ele tinha uns doze anos. Os pais eram divorciados, a casa ficou pro filho. O lugar era o nosso paraíso. Lá não havia derrotados, não havia “mundo lá fora”, não havia expectativas, deuses, demônios, prédios, carros... até a falta de mulheres era superada – em certa medida. O paraíso da nossa turma (jovens, bêbados, suficientemente inteligentes, talentosos e desperdiçadores de vidas que ninguém sentiria falta). Capaz de em nossos velórios irmos apenas nós, os pais iriam só por serem pais. Já deveríamos ter saído das casas deles, mas a vida não quis. Espero que “AINDA não quis”, ninguém quer ficar lá pra sempre. Eles pensam que gostamos mesmo daquilo. Porém tiramos nossas mentes de lá bem antes dos jovens que saem bem sucedidos, embora nossos corpos continuem ali.
Eu, particularmente, tenho certa raiva dos meus pais. Me colocaram no mundo sem nem um tipo de planejamento. Não tinham condições financeiras nem mentais para terem filhos – dessas duas, a única possível de alcançar é a financeira. E depois, simplesmente, exigem que a gente vença o mundo lá fora, que sejamos verdadeiros protagonistas de romances burgueses. NÃO, pais! Nós odiamos isto tudo, e não temos a menor vontade de levantar nenhum prédio, de construir nenhuma ponte, de defender nenhum político ou pai de família, de lecionar pra nenhuma criança, de criar nenhum software... o que queremos é dormir, dormir e acordar com um beijo de uma bela jovem, e viver ali, dentro daquela bolha, até sentirmos vontade de sair para respirar algum ar, poluído ou não, e depois pensaremos o que faremos. Poderíamos até dar aulas para crianças.
Então tinha a Monster. Lá bebíamos, compúnhamos músicas, escrevíamos poemas, raramente levávamos mulheres – mais levávamos! –, conversávamos e fazíamos projetos que pensávamos de verdade realizar. Era mais virtuoso que estar na câmara dos deputados. Mas ninguém vê por esse lado.
Então Ronaldo perdeu o emprego. Sempre perdia os empregos, mas logo arranjava outro, e ficava o tempo que dava; muitos eram contratos provisórios. Mas desta vez não foi fácil encontrar outro. Tentou. Em três meses, a situação ficou insustentável. Faltou grana até pra comida. Teve que ir pra casa do pai. O pai é um grandessíssimo filho da puta. Uma vez tentou matar um de nós atropelado. Sorte dele que não conseguiu. Nos viu andando na rua e jogou o carro pra cima de nós.
Galera -- disse Ronaldo --, sei que vocês têm direito de prestar queixa... mas peço que não façam. Ele não tá bem da cabeça, não.
Relaxa, brother, a gente nem gosta de polícia.
É um ser truculento, bruto, bestial, daria um bom PM. Acho que nem terminou o fundamental, e, se terminou, garanto que não consegue redigir um texto. Uma vez chamou o próprio pai de analfabeto. Como se ele fosse o próprio Pessoa! Ao menos o velhinho não teve oportunidade de estudar. E ele, que teve e é um analfabeto funcional?!
As brigas eram todo dia. Sempre por culpa do pai. Sem defender nosso amigo... mas o cara não é de confusão. É capaz de ficar num quarto por horas e você nem saber que estava na casa. Quieto. Ia atrás de emprego. Queria, mais que o pai, sair dali.
Mas o bestial pai é, claro, um frustrado. Não sabe que é um frustrado, pois não reflete pra chegar a essa conclusão. Mas vê, pelo menos, que é um derrotado dentro da sociedade de consumo, e não suporta a idéia. Desconta em cima do filho, que fica quieto até certo ponto, depois devolve alguns palavrões. Quem condenaria alguém por devolver um palavrão?
A Monster House ficou fechada por dois meses, e sempre que passávamos em frente, dava um aperto no coração. Sentíamos que a casa tinha vida própria, que sentia nossa falta; ela também era uma derrotada perto das vizinhas. Mas suas portas estavam fechadas. Pulei uma vez o muro pra dormir lá, depois de ficar numa festa e perder o horário do último ônibus. Fiquei bêbado demais pra tentar outra coisa. Pareci criança que sofre uma queda e corre imediatamente pros braços da mãe. Pulei o muro.
Tu não ficou com medo do vigilante te dar um tiro? – perguntou Eduardo, um dos nossos.
Ele não recebe dinheiro pra vigiar aquela casa – disse Ronaldo.
E se o cara entrasse pra pular o muro da casa vizinha?
A única maneira de alguém levar alguma coisa pulando a Monster. – baguncei.
Imagino a reação dos vizinhos vendo um ladrão pular a Monster: “Liga pra polícia, que tão vindo pra cá!”
Seus filhos da puta. Agora, sem molecagem: tu deu sorte.
Estamos sempre dando.
Tu dá sozinho – mas a piada foi de baixo nível e quase ninguém riu.

SÁI DO MEU CARRO, FILHO DA PUTA! – abriu a porta e empurrou o moleque.
Eu não volto mais praquela porra!
Não é pra voltar mesmo, não.
Eu tenho casa.
Tu vai comer as paredes?! – o moleque saiu andando.

Eduardo me ligou.
Ei, cara, a Monster House voltou.
O que aconteceu?
Vem pra cá que a gente te conta.

Aí ele falou: “Tu vai comer as parede?!” – bebemos.
No dia seguinte levei dez reais e Eduardo levou vinte. E Ronaldo comeu salsicha, calabresa, bacon, ovos e uma farofa que já vem pronta.