quarta-feira, março 13

Livre Como Um Pirata - Cap. 7


Lembranças contigo eu tenho de sobra, e desde já peço perdão por estar te matando antecipadamente. Lembro de quando você ainda era um bebê e engatinhava pela casa da vovó, e eu estava no meu quarto fazendo algum trabalho até que eu te ouvi gritar e chorar e saí correndo em desespero para ver o que havia te acontecido. Você tinha machucado o dedo mindinho na cadeira de balanço, e eu fiquei muito puto com a minha tia por que eu disse para ela tomar conta de ti. Teu dedinho sangrava e a unha tinha caído. Só me lembro de te pegar nos braços e te fazer um curativo. Então eu te levei pro meu quarto pra cuidar de você enquanto ficava fazendo alguma coisa no computador e, não sei por que, botei pra tocar umas baladinhas de rock’n’roll e você adormeceu como um bebê que era. A unha nunca mais cresceu, mas você também nunca se importou com isso.

Outra vez, você mais crescido, lembro que em São Luís já não chovia há séculos e o calor tava de matar. Já era madrugada e eu não conseguia dormir, então, de repente, começou a chover e nos levantamos meio que por instinto e fomos sentar no quintal. O Negão ficava com aquelas brincadeiras chatas de ficar esfregando o nariz na gente e você ficava só do meu lado, olhando a chuva como quem acabara de presenciar um fenômeno sobrenatural. Às vezes esses momentos se repetiam, quando o sono me faltava. Eu tentava enganar vocês dois, caminhando na ponta dos pés, mas nunca consegui passar despercebido. O que vocês não têm de juízo, compensam na audição. É tocar os pés no chão para atiçar a maldita curiosidade da dupla.

Também lembro de uma vez que você foi brigar com o Negão e tentou pronunciar algumas palavras. A reclamação me soou como uma piada. Eu ri tanto e tive a infeliz ideia de ficar te imitando até que você me lançou aquele olhar desapontado fazendo brotar um sentimento de culpa terrível no meu peito. Então te pedi perdão e você me perdoou.

Um tersol no olho esquerdo


Não me reconheço mais. E não adianta me olhar no espelho durante uma hora seguida ou perguntar pra alguém quem eu sou. Rio sozinho. Tenho vontade de empinar pipas e bater uma bola. Ser  o prefeito da cidade. Assaltar bancos com  amigos. Matar Sarney a queima roupa e ser manchete nacional com muito orgulho. Ontem pisei num caco de vidro e vi o sangue escorrendo e nem parecia que era meu. Nem dor tive. Foi estranho assim como meus sonhos ultimamente. Tantas pessoas que nem conheço estão neles. Coisas malucas. Vi um homem em ritmo frenético transando com uma mulher e depois o esperma branco e aquoso saindo pelo nariz e pela boca como se a mulher acabasse de ser retirada de um afogamento.  Não vejo o futuro de forma clara e nem dou palpites. O passado tento relembrar nas fotos em cima da estante na sala e nem quero saber de livros de História. O presente é esmagador assim como o calor da ilha e os pensamentos. Bebo água como se tivesse caminhando por um deserto sem cor numa eterna diáspora. Dá pavor pensar em faltar grana pra comprar água e eu morrer desidratado. Antes sentia dó pelo mendigo da esquina da minha casa. Agora não tenho mesmo tempo pra isso ou talvez seja eu o próprio o mendigo e outros é que me vêem com dó. O cabelo cresceu, as unhas, o desvio na coluna, a paranoia. Tenho um canal pra fazer no segundo molar inferior direito.  O mundo ta cada vez mais sem pé nem cabeça ou sou eu ou os dois. Não codifico os signos. Medo de parar num hospício como um personagem que criei. Sou um pouco dele. E isso aqui não é um conto, um poema, um desabafo, um vômito a la Caio Fernando Abreu ou uma espécie de diário. É uma necessidade como cagar, mijar, comer, fuder. Não há começo, meio, onde, quando, estilo, final de efeito, muito menos dor ou prazer, mas vai ter um título como quase tudo.  É isso e pronto. Faz parte. Não tem onde chegar essas palavras. Sei que tou com um tersol no olho esquerdo e ele furou e isso significa que está próximo de ficar bom.