quarta-feira, agosto 24

MORANGOS NUM DEPÓSITO SUADO




Em cinco minutos havia comido toda a comida, que mamãe preparou. Estava fria, o suor do depósito escorria, igual ao o meu, em dias muito quente. Observei as coisas ao redor, os recados no quadro de recados, os livros espalhados nas estantes de ferro e pela janela vi as crianças semi-nuas que brincavam sem noção do mundo lá fora. Desejei roubar, sorrateiramente, suas inocências, suas fantasias e seus sonhos modestos.

Morangos no depósito plástico. Foto de Cris Lima.

Ouvi vozes por toda a parte, vozes que eram conhecidas, vozes que queria esquecer por um segundo, minuto, horas, semanas, meses, não sei anos....talvez. Queria mandar todas aquelas vozes irem embora. Tive raiva, muita raiva daquelas vozes. Por que não procuravam ir para suas casas? Por que não procuravam descansar ou simplesmente ficarem caladas, como eu? Como eu estava inerte, parada, flanando no sofá laranja, com o meu cordão de pérolas pretas?
Estava só, sozinha nesta hora do dia em que eu podia ser eu mesma. Quando estamos completamente só é quando somos verdadeiramente, nós. Despidos diante de um espelho cuja imagem somos nós mesmos, mais ninguém. Não precisamos representar, não precisamos sorrir e nem fazer a sala para ninguém estamos só. Não precisamos ser atores.
Encontrava-me sozinha no meu palco sob a luz de meus olhos, sentindo o barulho do mar e o dançar das árvores valsando ao som do vento quente de Agosto. Observei mais uma vez as crianças, agora era apenas uma e ela estava, completamente nua segurando um saco plástico. Ela corria e corria pelo quintal , sem preocupação, sem pudores, só ela. Eu quis tanto e tanto ser aquela criança e comer o peixe , que a mãe preparava no fogareiro. Peixe quentinho e simples! Lembrei da mesa lá de casa do sorriso escandaloso de mamãe e da cara rabugenta de papai e  quis fugir, mas não pude. Então, lembrei dos morangos baratos no depósito suado que mamãe havia colocado.

Hoje acordei um bicho estranho



Não é só má tradução do que me senti. É serio. Acordei com dezenas de patas pequenas apoiando um tronco imenso. Tentava me mexer, saca?! Me desequilibrei e cair da cama pro o chão. De cabeça para baixo. E vi o teto. A lâmpada fluorescente pra economizar luz e vi as arestas com teias de aranhas. Preciso de uma vassoura pra tirar... do teto. Doidera, mas é a primeira vez que observo esse teto.
Bateram a porta varias vezes:
- Aconteceu alguma coisa?!
Deve ser minha irmã. Mora eu e ela e seu filho que deve esta pra escola. Tento responder. E minha voz não tem palavra. Só um zumbido estranho. Estou ficando preocupado. Me balanço pra esquerda e pra direita pra ver se minhas milhares de patas saem de cima dos meus olhos. Agora que percebi; o mundo não está mais colorido.  Preto e lilás e fosco. Talvez seja a falta dos óculos contra a míope e o astigmatismo.
- Aconteceu alguma coisa?!  
Minha irmã continua batendo na porta. E como disse minha voz não tem palavras. Só um zumbido estranho. Zzzzzz... Algo assim. Mas o engraçado é que penso normalmente. Talvez seja um sonho, ou melhor, um pesadelo. Virar um bicho estranho depois de acordar é coisa de escritor pós-guerra, loucos, usuários de crack ou de filme de terror. Sei lá. Isso não é comigo.
- Aconteceu alguma coisa?!
Já já te respondo minha irmã. Me balanço cada vez mais pra direita e pra esquerda e consigo me virar. Ufa! Doe as costas.  Vou caminhar até a porta para abri-la e desfazer todo esse mal entendido. Explicá-la que acordei e to cheio de patas e não vejo as cores como antes e que é tudo um pesadelo. Nada mais. . Preciso dos meus óculos. Sei que eles estão naquela escrivaninha ali na frente ao lado cinzeiro. Poxa! Preciso de um cigarro. To ficando nervoso. E um analgésico pra essas dores nas costas.
Continuam batendo na porta. Cada vez mais forte. Deve ter outra pessoa. Por favor! Não quebrem a porta. É madeira compensada. Não é resistente. Nunca tive nada de madeira de lei. Nunca tive grana suficiente pra comprar uma coisa... De mogno. Mas não batem desse jeito. Vão quebrar a porra da porta!  Custou dinheiro. Tive que dar duro e olha esses calos nas mãos. Foi serviço pesado. Mas que calo na mão? Tenho patas. Isso. Nas patas. Calos nas patas. Peraí?! Vou abrir. É difícil controlar todas essas patas. Mas difícil que convencer meu sobrinho parar de jogar vídeo game. Uns minutos e chego aí na porta. Não batem assim. Vão quebrá-la. Só mais um minutinhos. Tenha Calma e tudo vai da certo..
Droga! Tava escrito na testa que iam derrubar a porta. Eu disse que não era pra baterem forte! É madeira compensada. Hã? Meu vizinho o que faz aqui?! E esse machado na sua mão e essa cara de raiva. Desgraçado! Foi você que destruiu a porta. Por que você está vindo na minha frente com esse machado? Peraí?! Isso aqui um pesadelo e eu te conheço, cara! A gente joga dama apostado quase todos os dias. E você que me deve. Eu devia esta com raiva. Perdeu aquele ultimo jogo. Somos amigos. Que isso?! Não seja agressivo comigo. E esse machado é meu. Fui eu que te emprestei pra você da um jeito naquele canil pro seu cachorro. Um Pit Bull, né? Cachorro brabo.  Não me acerte esse machado. Minha irmã?! Por que essa cara de nojo. Sempre te tratei bem. E cade seu filho. Ta pra escola, né? Minha irmã diga pra ele que é um mal entendido. Nada demais.  Não sou um bicho estranho. Pra ele parar de me acertar esse machado. Dói pra caramba. É só um pesadelo. Eu acho. Pegue meus óculos. Ele vai me matar.